Publicado em: Abril/2006
por Rene Pereira Melo Vasconcellos
Uma vida desperdiçada na vitrine dessa vida, eis a autêntica idolatria… Sim… Tratamos aqui de um homem dado a muitas imaginações, um tipo que ansiava mais que tudo encontrar seu lugar no mundo, todavia perdeu-se, eternamente de si mesmo. Que desespero foi aquele… quanto mais o seu eu vazio se enchia do mundo, tanto menos sua consciência esclarecia e tanto mais se alienava de si – como já foi dito em outro lugar, o desespero é a inconsciência que o homem tem do seu propósito espiritual[1]. De outra parte, ao indivíduo que encontrou seu propósito existencial, só convém ocupar a posição que lhe é concernente, sob pena – caso queira, executar o serviço do Outro – de enredar-se em confusões que lhe amarguram a alma e perturbam o espírito; se num sentido, ao individuo apenas lhe compete exercer o seu único, especifico, restrito e particular propósito, não se pode dizer o mesmo quanto ao propósito, aqui não se aplica a mesma fórmula, já que pode ocorrer de vários indivíduos terem realizado, apenas num certo sentido, o mesmo tipo de propósito. Esses indivíduos podem ser de gerações, períodos ou épocas distintas – são os contemporâneos espirituais salpicados na linha do tempo, cujas afinidades e motivações estão, quando em relação, se atualizando infinitamente, porque se dirigem á mesma eternidade. O individuo que encontrou o seu propósito existencial sofre benefícios significativos frente ao ‘homem do seu tempo’ esse irremediavelmente estacionado no olvido das eras.
Contudo, em todo o tempo, a atenção é a exigência dessa questão: o destino existencial não se oferece, jamais, a espécie!!! O destino espiritual, jamais, entra em relação com a espécie!!! O destino espiritual se oferece, em restrita e absoluta exclusividade, ao individuo: atrai-o e requer dele, – indivíduo – a mais absoluta exclusividade de propósitos e coisa espantosa, um não se realiza sem o outro. Podem ficar meses e até anos, somente, medindo-se numa beobachten[2] estéril, numa luta surda onde a vontade férrea do homem prevalece, escoltada por um desespero tornado habitual ou… Vai que ocorre de o homem interessar-se, vai que ocorre de o homem querer, vai que ocorre de o homem decidir-se, então, num átimo, surge o clarão de consciência, e por fim… Acontece o instante que esperava desde uma eternidade por aquela ocasião em que a criatura responde ao chamamento, escolhe ser um escolhido para aquela vocação que lhe sorri e o que era apenas uma possibilidade se concretiza na escolha que afirma a existência do indivíduo na sua relação com o Eterno e se confirma, através de sua práxis no mundo. A escolha que afirma a existência encerra em si, o risco supremo de ousar ser o indivíduo que verdadeiramente se é, único, genuíno e inigualável.
A relação entre o indivíduo e o Eterno é da cor do risco. Nesse ponto já não há, sequer, a linha, velha companheira do equilibrista, para servir de vereda que transpõe os abismos insondáveis da Providencia. Da prancha eternal, bem alicerçada na solidão, a criatura se desembaraça de si mesma; naufragante, lança de si legiões de cargas que pesavam na alma e que se desprendem em grossas camadas de dor e agonia. Esmiuçada a alma, eis que o homem apruma-se, concentra-se indivisamente no alvo celeste e… e, dá O Salto de encontro ao Absurdo, dimensão completamente inacessível aos rigores das verificações analítico-objetivas. Atitude existencial por excelência, O Salto, projeta o indivíduo para fora dos limites, confortáveis e seguros, da lógica e da razão, enquistadas no senso comum. Nos domínios do silêncio, berço das reflexões decisivas, irrompe no indivíduo a força interior requerida á realização do ato inaudito de entrega e disponibilidade na relação com o Eterno.
A disponibilidade e o desprendimento, em tudo que compreende a relação com o Eterno, encontra um suporte: a confiança que a tudo preenche e a tudo sustenta. É precisamente nessa confiança que se inscreve a ousadia que mobiliza o indivíduo a lançar-se na relação com o divino: colocar-se, totalmente, nas mãos do Hábil Arqueiro. Quem conhecerá o turbilhão de sensações e impressões que invadem a alma daquele que se lança na relação com O Eterno? Ser flecha que acerta o alvo implica, inicialmente, em sair da segurança da aljava, e estar, apenas flecha nas mãos do arqueiro, flecha que, ainda não foi lançada… Humildemente entregue, como uma criança que se deixa rodopiar nas mãos do pai, a pequena flecha se permite movimentar no movimento quando aceita o poderio do Hábil Arqueiro. Cumprindo os tempos, espera na posição, o momento do lançamento que a conduzirá em direção ao alvo; ao descobrir a ação que o destino lhe requer se torna livre para decidir e agir, tendo por certo que, Aquele que infalivelmente, acerta o alvo é, eternamente, presente em todo o processo!.. Ele é o principio e o fim do evento da relação – esse Outro que executa o lançamento é o Mesmo que vê lá na frente e se faz alvo para o Eu que aceita a prova a fim de atualizar-se na presença do Eu Sou Quem Sou.
Na ação recíproca – o Arqueiro recebe e exerce a ação, e o evento que do lado da flecha se chama consagração, do lado do Arqueiro se chama libertação. A flecha não existe sem o Arqueiro e a existência do Arqueiro só pode ser abordada e ganhar visibilidade através da fidelidade e no testemunho daquele que se fez flecha. O Arqueiro distende o arco, retesa a corda e envia a pequenina flecha para a carreira proposta; em seu vôo solitário, ela corta os ventos uivantes e zunindo na companhia de gemidos inexprimíveis, rasga o véu dos temporais e os obstáculos invisíveis refletem seu clamor fazendo ecoar em ondas infinitas, o verbo em ação, que nasce da fonte mais pura, a fonte da sua própria existência. Na espantosa trajetória fende Ares e prossegue em seu caminho sem declinar, vencendo a resistência das funestas potestades do ar, dos medonhos, e também dos pavorosos, temporais, e ali mesmo onde jaz o perigo se levanta o livramento providencial. Sustentada pelo invisível que não desampara – quem dele consegue se recordar -, traspassa, por fim, a nesga que se coloca entre o infinito niilista e a eternidade. Porque é imensurável, infinitamente, a diferença entre o infinito e a eternidade cujo desvelamento eterno é sempre uma manifestação do vivido: porque uma é a onipotência do arqueiro e outra bem diversa é o temor e tremor, daquele que se faz flecha arremessada, a serviço do Arqueiro!
No indescritível instante, O Extraordinário se apresenta em todo o seu esplendor, em pleno processo, acontece o misterioso encontro. Apurando o ânimo, segurando o cálice, sem desmaiar, o indivíduo tira da fraqueza forças, e o que era só um lampejo de esperança se deixa desvelar cada vez com maior intensidade até confirmar-se, reluzente… a presença a si mesmo. Nesse instante tremendo, a tristeza não suporta tamanha contradição e se deixa arrebatar por um lancinante entusiasmo que sabe re-conhecer os mistérios do Caminho daquele que quer se encontrar. Sem costas largas, mas luzindo na aljava do Hábil Guerreiro; como sem proteção, mas sendo arma eficaz nas mãos do Poderoso Arqueiro; como esquecida, mas eternamente presente; como desconhecida, mas conhecendo-se a si mesmo; como farsante e sendo verdadeira; como imobilizada, mas penetrando para além das fúrias dos ventos repugnantes; como morta, mas eis que vivendo intensamente.
Não obstante, aquele que olha de longe jura ter visto um caniço açoitado pelos ventos, cuja intensidade das rajadas o fazem mudar de direção, desordenada e bruscamente ou uma folha ao léu, maltratada pelos ventos – figurante do cenário outonal fadada ao escoadouro das águas. Na sociedade dos espetáculos, a turba ensandecida continua desejando circus e a olho desarmado, despreza tudo o que não se enquadra nos limites da estética logo… quão pavoroso lhe parece aquele movimento; o comum das gentes repudia tudo o que não pode ser utilizado para o usufruto da fantasia cujos critérios devem incluir o encantamento do Belo, a hipnótica fascinação cujo deslumbramento explode em êxtases de virtualidades que levam ao Não-Lugar, ou seja, ao nada logo… quão terrível lhe parece o rastro da flecha na tormenta. A sociedade do espetáculo que se ocupa de promover aquela alegria despistada, que de tão distraída sequer se dá conta de disfarçar o desespero que a move só atenta para a profundidade das espumas logo… quão abominável lhe parece a solidão onde ocorre esse encontro. Sequer desconfia, aquele que viu de longe, que no outro estágio o indivíduo combate com as potestades do ar e experimenta o cavalgar furioso dos ventos contrários e quando se sente dissolver, aí conheceu o que significa dançar com o vento. Naquele lugar, onde todo e qualquer movimento implica em risco – eis aqui a verdadeira arte trágica.
Do ponto de vista temporal, terrestre qualquer tipo de preocupação nesse sentido, não passa de uma ninharia, dando voz ao mundo, não passa de ossos de borboleta a preocupação ou a ocupação que se dedica a esquadrinhar o subjetivo, – que é o exercício da verdade interior do individuo. Querer a toda prova desentender-se do torvelinho em que consiste sua interioridade, evadir-se da revolução em si mesmo, fugir por cinco caminhos para desembocar na fronteira do império dos sentidos que separa o homem distraído do seu “eu interior” e o arrasta ao infinito é a resposta manifesta que o espírito do mundo espera do homem: sentir, utilizar, manipular, experimentar. É esse o espírito do mundo cuja maior delícia consiste em mergulhar no mar das multiplicidades, generalidades objetivas e ou virtuais – abominando ferozmente qualquer vestígio de individualidade. A distração, velha camarada, sempre inclinada para o objeto, coloca o sujeito diante de uma legião de outros “eus” possíveis e passíveis de serem consumidos e ou cinicamente copiados e reproduzidos… Menos um, justamente, aquele que não se vê: o único, genuíno e singular, qual seja, o eu interior, pura paixão, nascido – em dores – de si mesmo, na relação íntima e face a Face.
Em oposição a consciência que se expande, fruto da relação e do conhecimento dessa relação, surge a desatenção, artimanha da memória que clama por esquecer–se de si, para desatualizada, tornar-se um arquivo caleidoscópico e impessoal, assassinando as recordações decisivamente significativas, desperdiçando o instante imortal e fugaz cuja vivência o levaria a conquista da eternidade. Numa disposição interna para o embotamento, a criatura elege encher-se de mundo, ser estrangeiro de si próprio e nesse mote, vai coxeando com as aparências e chutando com o calcanhar o eu escorraçado, que sempre emerge sinalizando para o instante de eternidade, que pode ocorrer a partir do decisivo instante da escolha. Daí, precisamente, o desespero que o agita por dentro e nunca o abandona, enquanto ele deseja, sempre, os objetos que se perfilam diante dele. Abrasado pelas possibilidades ilimitadas vai desesperando a cada momento – o seu “agora” não passa de experiências pretéritas, que se repetem infinitamente. Em não encontrando, jamais, seu propósito existencial, prossegue com um conhecimento muito, muitíssimo, brumoso de si mesmo.
Nessa luta renhida contra o adversário que é mais forte que ele mesmo, ou seja, sua própria vontade em recusar querer ser seu verdadeiro eu, acaba por sucumbir, na tentativa infrutífera de querer separar o seu eu do seu Autor assim ele é todo desespero e até sua alegria se compõe de um forro de dores… A comunicação entre o indivíduo e o Eterno se estabelece na presença de uma entrega recíproca e de um amor absolutamente incondicional. Na eterna presença… Completar a curva da existência até atingir o alvo, cujo centro chama-se: Eu Sou, eis a urgência em que todos, mas, exclusivamente, cada um, em particular, deve aplicar seus interesses. O lugar do Eterno é indispensável para a realização existencial do indivíduo, é na relação que o indivíduo se reveste da sua identidade indestrutível, por ser imortalmente eterna! Precisamente nesse ponto ocorre o encontro com o Eu Sou. Longe de todas as acomodações e conformações pequeno-burguesas, que corrompem a relação com Deus rebaixando-a, a um relacionamento de meros exercícios comerciais visando, apenas, o sucesso, os lucros imediatos e as barganhas inomináveis obscurecendo desse modo, a luz que o faria vislumbrar o caminho. Essa trajetória não permite movimentos negligentes por tratar-se aqui de uma experiência singularmente arriscada, particularmente individual e vivida em temor e tremor.
Renê Pereira Melo Vasconcellos é psicóloga, doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidad Pontificia de Salamanca, na Espanha.
[1] Soren A. Kierkegaard.
[2] Nesse contexto beobachten – observar, será melhor entendido em oposição a zublicken – contemplar, esse último aludindo a uma vivência intensa e profunda que se dá na presença; ao passo que o primeiro, guarda uma reserva, uma distância, do objeto observado.