Publicado em: Dezembro/2004

por Rene Pereira Melo Vasconcellos


As dificuldades nos relacionamentos interpessoais se agravaram, substancialmente, nos tempos pós-modernos: o ardor consumista ganhou abrangência e eficácia na velocidade da informação cujo ritmo alucinante defende a mudança contínua e incessante como a verdade absoluta do fim dos tempos. A imposição à mudança ganhou status de mantra cuja cantilena reza a sentença: tem que mudar, obrigatoriamente, necessariamente e sempre!!! Segundo essa ótica, quem não muda fica para trás, é retrógrado e não vai conseguir sobreviver no futuro; essa exigência virou lugar comum nas empresas, entre a classe política (inclusive entre aqueles que continuam os mesmos), no meio acadêmico, que deu ouvidos ao canto da sereia alienando-se do seu papel crítico- social ao ponto de sucumbir diante do luxuoso disfarce que escondia o monstro atroz.

Contudo, nada foi mais devastador que o impacto exercido pelo clamor das mudanças no âmbito das relações humanas; já não se pode falar em relacionamentos afetivos, amorosos e menos ainda, íntimos, já que a velocidade das mudanças atingiu como um dardo inflamado a relação homem-mulher rechaçando a intensidade e repudiando a profundidade dos relacionamentos que anelam a eternidade – única dimensão possível para a plenitude do amor. No torvelinho das mudanças, o que conta é o instante fugidio, a efemeridade voraz do momento, onde o presente é consumido num desvanecer eterno cuja descontinuidade abortiva desautoriza qualquer possibilidade de amanhã.

Esse é o espírito da Sociedade de Consumo cuja marca registrada é a superficialidade, viandante contumaz das esferas neoliberais, em cujos circuitos se estabelece o ciclo vicioso do “uso e descarte” para sacrifício idólatra ao deus-mercado. Nesse sentido, o deus neoliberal tem engordado com os holocaustos oferecidos a ele e logrado ocupar espaços estratégicos na subjetividade de seus devotados ascetas cujo deslumbre contemplativo se rende frente à lógica do mercado, que agora vemos ser transplantada para os relacionamentos pessoais: a lógica perversa do lucro dando lugar à perversão no âmbito do Amor. A lógica da cultura de consumo, subordinada aos critérios empresariais do lucro se articula com a ânsia do “cada vez mais”, para que da necessidade insaciável surja a frustrante insatisfação. De tanto usar e descartar as “coisas” o homem do século XXI passou a usar e descartar relacionamentos – idéia-força que norteia a práxis pós-moderna disseminada entre adolescentes, jovens e também adultos, qual seja a cultura de Ficar!

“Esse é o espírito da Sociedade de Consumo cuja marca registrada é a superficialidade”

Não é de se espantar afinal que o shopping center seja o point preferido de jovens e adolescentes, é ali, mas não só, que Maricota “desenrola” Mário para Mariazinha (que continua indo atrás das outras); num sentido, querendo ou não, Mariazinha embrulhada para o consumo, se dispõe a ser desenrolada, usada, com toda rapidez e nenhuma eficácia… para depois, ser mercadoria descartada como as outras. Com um pouco de sorte, depois de uma reciclagem rápida diante do espelhinho poderá ser reutilizada e fazer combinações diversas com outros pares. Como um chiclete que se masca e joga fora, Maria sabor morango vai direto pra lixeira, Joaquim sabor maçã verde, não teve a mesma sorte e foi deixado ali mesmo na sarjeta, que se dirá da Marieta, gute tutti-frutti, foi usada e reprovada acusada pela galera de halitose!!! Curiosamente, apesar de ser “permitido” às garotas adotarem o mesmo estilo dos rapazes, – o que a priori poderia parecer uma “liberação feminina”, – aquela que já ficou “com todos os meninos da escola” fica mal-falada na área, ao passo que, se o garoto apresenta a mesma performance, ele, ganhará status diferenciado!!! É o velho espírito da dominação machista re-atualizado sob égide da incoerência e do cinismo hipócrita típico da classe média.

Não se pode dizer que haja critérios para ficar, grandes exigências, nem pensar… Aliás, quem fica não pensa! Ficar ali, aqui e também acolá, não importa o lugar é a regra básica. Tampouco quando, como e com quem, afinal, a onda é essa: ficar!!! Diga-se de passagem que na maioria das vezes se fica por ficar, para depois ter o que contar. o que implica estar com todos e qualquer um, sucessiva e seqüencialmente, um após o outro, porque o que vale aqui é a quantidade e os recordes que se pode alcançar nesse pit stop sexual. Como as ondas que se segue uma a uma, sem que um se aperceba das diferenças entre a anterior e a imediatamente após, assim se vai ficando… Como a água, inconstante e inquieta, intermitentemente, sucessivamente como as ondas do mar que com grande ímpeto se levantam para imediatamente se desfazer em espuma, assim o relacionamento de quem fica se desfaz … Dá em água, vira espuma…. Superficial como as espumas do mar que de profundo mesmo só a sujidade tragada da imensidão do turbulento mar revolto. Turbulentos também são esses tempos que passam sobre nós com suas ondas agitadas que inviabilizam um olhar mais demorado, aprofundado porque mal se formou já se desfez.

Diante destas forças claramente desintegradoras do tecido social, começa a se formar situações de insustentabilidade social quando os cordões que compõem a margem do processo econômico engrossam cada vez mais, composto por uma massa gigantesca de famintos, indigentes, analfabetos, desempregados e agora mal-amados. Enfim, os chagados de uma sociedade controlada por elites cada vez menores, contudo respaldadas por uma classe média assustada com a proximidade da decadência; assim, desesperada cede à ilusão da vida sem vínculos firmes, estabelece pactos para receber as migalhas do poder e perpetuá-lo, sem dar-se conta que junto com a fatura empurra seu futuro no abismo sem fundo das superfluidades.

Logo, torna-se compreensível a interpretação dada por alguns autores quando propõem soluções que permitam uma maior coesão social num mundo de exclusões, neoliberalismo e concorrências: “as pessoas podem supor, erroneamente, que conseguirão o equilíbrio sem assumir compromissos sérios. De algum modo, por não estarem presos a nada, costumam acreditar que assim têm mais liberdade para jogar melhor com os diferentes elementos de suas vidas. Isso, porém, exacerba fatalmente a incerteza e a ansiedade.

Assumir compromissos dá às pessoas a segurança e a base para desenvolver suas plenas capacidades individuais. Com a crescente flexibilização do emprego, o compromisso na esfera do trabalho vai se tornando mais difícil e pode mesmo ser desaconselhado como fundamento de segurança e identidade pessoal a longo prazo. Uma das alternativas é o compromisso no âmbito do amor. Pode não ser estranho como parece ajudar os jovens a compreender melhor como o envolvimento amoroso é capaz de auxiliá-los positivamente a fomentar maior coesão social em um futuro próximo”.PAHL (1997).

Ironicamente aquele que pensa que trocar sistematicamente de parceiro vai lhe proporcionar novidade de vida, acaba por cair na mesmice convertendo-se num escravo solitário de seus próprios interesses; restringindo seus relacionamentos à dimensão sexual limita às outras áreas de sua existência e não pode fugir da sensação de vazio e irrealização. De outra sorte, aquele que estabelece uma relação com a convicção de que o Amor é o requisito da plenitude, usufrui da prazerosa exploração do encontro genuíno com o outro, que é o seu próximo e companheiro na misteriosa aventura do salto rumo ao infinito: liberto das amarras do medo, para se encontrar, se completar até alcançar a suprema glória de se fazerem um. Num mundo de crise, violências e incertezas estabelecer uma relação fundada no Amor proporciona segurança e uma sensação de pertinência a algo maior, que transcende a própria existência e atinge as alturas da eternidade.

Renê Pereira Melo Vasconcellos é psicóloga, doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidad Pontificia de Salamanca, na Espanha.

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