Publicado em: Outubro/2005

por Rene Pereira Melo Vasconcellos


Nessa ocasião quero compartilhar uma experiência vivida por mim, quando a cidade de Maceió gozava um meio feriado, num dia expectante, como gosta de ser esses de junho, quando a maioria sente-se desconfortável, com a frieza da qual costuma se investir os dias no decorrer dessa época do ano. A cidade estava, por assim dizer, displicentemente silenciosa, se não fora o ziguezaguear intermitente dos mal-humorados ônibus que, em disparada evitavam as paradas onde havia apenas velhos e crianças. Risonhos, acenavam com suas sombrinhas, bonés ou qualquer coisa que tivessem à mão, quase em festa, ainda assim, eram deixados para trás, não sem um olhar desolado, que se voltava á direção oposta ao acinte para esperar o próximo.

Indiferente a afronta, o comboio segue em desabalada carreira, baixando e levantando sua frente altiva sem temor algum de ser engolido pela bocarra escancarada das vias escabrosas que se abre muitas vezes ao dia; desatinado precipita-se estrada a fora, locupletando- se de homens, para esvaziar-se em seguida, e tornar a encher-se, quantas vezes determine a jornada. O condutor apruma-se no banco e liga o aparelho de som cujo repertório é a delícia do vulgo que se entrega, sem oferecer resistências, aquele mantra de breguice; lá se vai, ladeira arriba e ladeira abaixo o monstrengo atrevido, carregando de um lado para o outro, como quem embala um bebê em cólicas, a dissonância dos disparates acústicos, audíveis por onde ele passa. A avalanche acústica faz tinir meus ouvidos, e grito, e grito, e grito: invasão, violência, crime! Mas já ninguém faz caso de coisa de tão pouca monta e até, os cerebrais das Alagoas se rendem colonizados à sátira azeda; num sentido, todos aprovam, cerebrais ou acéfalos, e os que não aplaudem, escutam conformados as parlapatices baianas tamborilando com os dedos ou criando um compasso, nos pés que pulam apressados, de um cafezinho para o outro.

Dando ouvidos a Victor Hugo concordo que “a música é o barulho que pensa” o que me leva a concluir que o ruído que sai da Bahia pode ser muita coisa ou qualquer coisa, ou seja, tudo… menos música! É a tal da pluralidade que de tão misturada equivale a nada ou coisa nenhuma. Aqui quero reter-me um pouco mais a fim de localizar, pontualmente, a insídia ao tempo em que, me solidarizo com o baiano que pensa, logo, sofre com a tortura acústica que invade sua geografia. O estômago me dando voltas me ensina que “o ruído que sai da Bahia é barulho que fede” incenso cuja essência exala a catinga daquelas ruas de Salvador demarcadas nas poças de urina e outros lixos. Oh… demência hedionda, invasão de subjetividade tão comum por essas praias, tão banalizada por essas bandas largas, cheias de tios e trios elétricos, inteligentes como papagaios de pirata! O medonho é que não há limites para os decibéis de tolices e a invasão da subjetividade se instala quando sou obrigada a ouvir o que abomino; recuso-me naufragar nas oscilações do outro, rejeito sua opinião, carregada de subsentidos, querendo alcançar-me, sufocar-me, forjar uma relação, impor um relacionamento com o império das notas insidiosas e invisíveis.

E os piratas invadiram a cidade… Treparam em potentes carros dotados com pesadas caixas de som bradando leviandades próprias para dançar para que tu, meu leitor, te esqueças quem tu és e te percas na dissolução.

Num sentido é digno de nota o contexto polonês, na época da Insurreição, quando os estertores do sofrimento popular, a fome, a falta de escolas, as guerras, a opressão dos inimigos e a indiferença das fronteiras próximas engendraram indivíduos que acreditavam que o sofrimento e a dor lhes infundiam nobreza e dignidade, além de imprimir em suas produções o selo da excelência. A literatura era proibida e os músicos e poetas entravam no combate transformando suas ferramentas de trabalho em armas poderosas – medicina para o povo e dardo inflamado no coração do adversário. Um espantoso combate que se dá ao nível das subjetividades. Numa perspectiva, foi assim com a música de Chopin, ouvida, pressentida e vetada pelo inimigo, o czar Nicolau, o tal que apreciando rejeitou: “essa música é perigosa. É como se canhões estivessem ocultos entre rosas belas e perfumadas”. Na Polônia, escudo da Europa, a música fortaleceu o povo e intimidou o inimigo, no Brasil das fronteiras devassadas que o diga a Amazônia – esse tremedal que quer se afirmar como a nova música brasileira tem anestesiado o povo e atraído bárbaros da Europa e EUA para consumir crianças e jovens brasileiros como quem come pão.

Ao que hoje no Brasil se diz música, seja baiana, sertaneja, brega ou na preferência de outros como “a autêntica expressão de latinidade”, a isso que vai enchendo muitos espaços, circundando e doutrinando as criaturas, enredando o povo como aos peixes distraídos, que se arrastam com a rede – eu afirmo: é radioativa como a chuva de Hiroshima, porque essa cardina fica impregnada na alma, destrói muito mais que ao corpo, aniquila um jeito digno de existir. Ai de mim…que sou testemunha auricular; minha alma se contorce em agonia quando a mim me é imposto ouvir as imposturas que esconjuro; sentir fundo o frio cortante dos estilhaços que a força das torpezas fragmentou e quis lhe dar um status de sonoridade. Em vagalhões vai cobrindo as criaturas com soberbas ondas de mediocridade e voluptuosidade ínfima arrastando as multidões tão propensas a mentira à esquecer suas angústias, o desemprego, a fome e o mal que assola, aflige a todos e a cada um individualmente; não, digo não, infinitamente não a isso!…

Aonde levará essa coreografia do brega? Até onde irá essa alegria forjada, de todo fingida, padronizada em uma gestualização estéril que concebe a massificação? Acompanharia o meu leitor até o infinito, e ali manteria o mesmo ritmo? Urgem as respostas para essas perguntas, porque quem dá o salto interior, – que as filosofias e teologias desconhecem – desperta para sempre, enquanto aquele que vagueia o olhar para fora de si vive na ilusão da imediatez e anela o fugaz, até que o inevitável ocorre, e todas as eternidades lhe alcançam, ali onde o pensamento finito não pode ser sua dama de companhia.

Sim… Creio firmemente que o crime contra a subjetividade é o pior que se pode cometer contra o indivíduo, o mais revoltante e abominável, pois se atreve a invadir a dimensão intima da interioridade, ou seja, aquele lugar sagrado que se chama o íntimo dos íntimos. Crime inescusável porque quer negar, e num sentido sobrepujar o ser único, transcendente, pensante, ou no dizer de Miguel de Unamuno el ser vivente y sufriente. Sim o ser vivente e sofrente que não se conforma em ser todos e combate com todas as suas forças para ser Um Único.

Música baixa em todo volume, porque o passageiro doidivanas ferido na alma pelas vaidades, quer esquecer a dor de ser um indivíduo, um eu, na inteireza de sua existência e o peso dos trabalhos que tal empreendimento requer sem ganas de dar o salto para dentro de si mesmo e encontrar-se, através da sua dor, com o Eterno.

Daqui do meu Farol me ponho na torre de vigia, desde minha fortaleza impenetrável onde respiro o mais rarefeito dos ares, como sucede nos lugares mais altos onde muitas vezes, inclusive, sinto falta de ar penso no meu leitor e pergunto-me: Te alcançou o mar da mediocridade meu leitor? Cobriram-te as ondas? Submergistes?

Desde aqui, meu leitor, continuo a buscar-te.

Renê Pereira Melo Vasconcellos é psicóloga, doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidad Pontificia de Salamanca, na Espanha.

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