Publicado em: Março/2008

por Rene Pereira Melo Vasconcellos


Algumas experiências adquirem particular significação em nossas vidas, me refiro àquelas circunstâncias que, vistas em retrospectiva, e só poderia ser desse modo, nos enche de alegria de haver tido a coragem, apesar da ausência total de garantias no momento em questão, de fazer a escolha que nos rendeu novos desafios e novas escolhas dentro da escolha porque, uma bifurcação sempre terá outras tantas diante de si. Agora! Afirmar que essa escolha deve ser aleatória, fruto do acaso ou uma fatalidade é fazer da incerteza “a” categoria… Eia! Como costuma dizer um jardineiro amigo meu – é preciso ter critérios e estabelecer suas próprias prioridades, caso contrário se conforme com um jardim a la romana [1].

Refletindo sobre alguns desses momentos existenciais decisivos me deparei com uma memória cujo conteúdo expressa uma vitalidade que se ancora numa convicção íntima que se renova a diário; cujo escopo torna-se mais definido à medida que eu me distancio daquele dia e avanço para as coisas que estão adiante de mim nesse movimento os desdobramentos se intensificam e a decisão tomada alhures ganha relevância e alegra meu viver aqui e agora.

Navegando nesses recuerdos, eis que emerge, com força, tão vívida memória, a ponto de se (re)criar num espanto renovado; num estremecimento superior ao de então, – tenho motivos triplicados para sentir assim de tal modo, que o relato apresentado teve o poder de calar no meu coração uma resolução inabalável.

A referida história não dava contas de teorias, apesar do protagonista ser essencialmente um teórico; o fato em questão, de tão corriqueiro, não merecia nenhuma atenção da mídia, apesar da grande fama de um dos envolvidos, quero dizer, um era reconhecido mundialmente o outro, seu filho, para quem, naquele momento só importava ser conhecido e reconhecido pelo próprio pai que de tão preocupado em libertar o mundo da opressão e das garras da ignorância ignorou a pessoa de seu filho criança, não notou que a vitalidade adolescente se esmaecia na dissolução, todavia, no final, se melindrou ao ver o zumbi atormentado e oprimido em que se metamorfoseara seu filho. Na sua perplexidade ficou atento e percebeu, tarde demais, o alheamento e o desespero daquela existência em agonias. Olhou e notou que ao seu redor a vida continuava normalzinha. Quem se importa? É só mais uma existência desperdiçada.

Pai TU me pega no colo? Pai TU brinca comigo? Pai TU me leva junto? Pai TU me ajuda? Pai TU viu o que eu fiz? Isso ocorre entre pais e filhos quando estes têm cinco, sete, até os nove anos de idade e… se tudo correr bem… Podemos dizer confiadamente: Que dupla, hein?! Com certeza, nunca existirá melhor parceria do que essa. Esse é o tempo-espaço onde é fornecida e produzida a liga da alma, onde o inusitado é sempre; onde a novidade do novo se dá a conhecer quando não se sabia o que é saber… Esse é o tempo onde a pureza dá as mãos á inocência e salta ousada, despreza o medo, porque tem fé. Fé em ti. Ó, TU que es eminentemente bom e suficiente para esse EU que é meu e para ti, quando estamos na presença. O meu EU que se forma, se cria e se recria e se maravilha. AHHHH…UUUHHHH…… CHUÁÁÁÁ….que cria e se recria na relação entre EU e TU. E se tudo correr bem… Se TU correres ao meu encontro quando Eu corro para ti, que bom será ser EU contigo e TU comigo, sendo assim, quem nos separará??? Nada nos separará! Porque me torno forte na tua presença. A relação entre EU e TU é indestrutível. Nesse encontro eu conheci o fogo, a água, o vento, o ar que agora é parte de nós. Ganho renovadas forças no poder que há na nossa relação, tudo é indestrutível nela, porque essa relação é a palavra-princípio – o princípio do TU Eterno. Onde toco as orlas das vestes Eternas.

Se me responderes, se atenderes ao meu chamado vai ser lindo, eternamente lindo. Que evento! Vou aprendendo de mim quando me encontro contigo, porque tu me revelas o que há de mais belo em mim e isso vem de ti é um segredo que há entre nós e me revelas . Sim… Eu sei, é tudo o que eu vivencio em TI que me faz Ser. Assim, possuirei eternamente os tesouros de Aladino, quem me roubará?? Naquela terra onde Hermes não pisou, estará meu coração, meus olhinhos qual tochas de fogo brilharão, sempre, na luz da tua presença. A presença é luz e EU me presenteio na tua presença. Se tudo correr bem e se TU correres ao meu encontro quando EU corro para ti se dará verdadeiramente o encontro onde a palavra princípio EU-TU alcança o Eterno. Amo e me amo quando o teu olhar verdadeiro e eloquente me envolve e nos envolve e me dá poder para afirmar ousadamente: Eu Vivo! Eu Existo! E a vida se confirma, dia-a-dia, todo dia, co-ti-diuturnamente se realiza, se concretiza no vivido. Na relação. No começo é a Palavra-princípio.

Ah… Não me negues teu olhar eloquente, significa tanto para mim! Ó quando eu lançar a palavra que evoca o TU, responde-me, vem… Quem ouve se não é para responder. Quem ignora o dialógico se não é para derrubar? Não te cales a meu respeito! A resposta é tudo! Não te cales, não me deixes sem resposta. É tua obrigação responder ao meu apelo dialogal, é tua obrigação e responsabilidade. Entre EU e TU emerge a revelação que me torna apto para agir. Nessa relação não existe o medo, desse modo sou totalidade que age e assim eu cresço na Tua presença porque eu creio na nossa relação. Vem ao encontro onde num relance a eternidade se revela no instante fugaz, não mo negues vida. Interessa-te por mim? Sou um EU para ti? Existo, para você, hein?! Existo??? Responde-me.

A criança pequena inicialmente exige a atenção dos pais, com uma exclusividade radical e incessante, até certo ponto tirânica. Contudo, se é certo, que nos ocupamos aqui de uma relação saudável a auto regulação é a evidencia primeira nesse processo que leva ao indivíduo da relação – e flui no sentido do equilíbrio e do ajustamento criativo. Na relação dialógica não há lugar para fraudes, dissimulações e manipulações como podemos constatar na existência concreta, daqueles que se dedicam a construir, juntos, e em novidade de vida sua vidas.

Naquela ocasião (quando me foi apresentado o drama daquele ativista desavisado e do filho que lhe tocara a Providência) eu ignorava completamente que a mais destrutiva e demolidora atitude que se pode ter em relação a um filho é a pressa, indiferença, desatenção e ou desapreço, não necessariamente o desprezo ainda que, eventualmente, esse possa aparecer nessas circunstâncias quanto mais filisteu é o sujeito tanto mais arbitrário ele se põe ou seria se impõe?. Compromissos em que não se chama pelo nome e que ignora o face-a-face, repudia o Outro enquanto Indivíduo, único, singular são características da tribo filistéia pós-moderna; nesse contexto, o íntimo é desqualificado existencialmente e sequer é referido no rol das cotidianices distribuídas na linha do tempo, da agenda do pai, inchada de compromissos importantes e vaidosos… Invisibilidade social é uma estratégia muito apreciada por esse tipo de dominador; daí ninguém se espante com a quantidade de crianças desesperadamente consumidoras, adolescentes e jovens rejeitados, revoltados, desconfiados e com um sentimento mórbido de inadequação, espalhados por esse mundo nos últimos dias.

Jovens e adolescentes que manifestam uma descrença absoluta, primeiro em si mesmo, depois nos outros e por último em Deus isso quando não são dados a hipocrisia mas se ocorre de serem cínicos começam bem cedo a exercer a pérfida arte de pregar uma coisa e fazer as outras, e isso com a cara mais deslavada e olhando nos olhos daqueles a quem pretendem enganar. Loar a autenticidade do discurso não dá garantias nenhuma de que este seja genuíno. Genuíno é tudo que é vivido! Existências não-confirmadas, atrofiadas sob o manto das generalidades e corrompidas com ração diária de ambiguidades, desconfianças, parcialidade e hipocrisias é o equivalente a existências desperdiçadas e eternidades comprometidas. Por isso todo cuidado é pouco para não colaborar com a demolição dos interiores. Não teriam uma responsabilidade ad eternum pais, professores, mentores espirituais, ou coisa que o valha, em relação a esses? Digo, tanto injuriados quanto hipócritas. Quem vai pagar por isso? Precisamente quem tem a obrigação moral, ética e espiritual de se ocupar das temáticas que afligem o homem comum e o nosso dia a dia? A quem compete encarar esse tema? Ao menos se inquietar? A quem coube esse ofício??? O Eterno que me livre e guarde de negligenciar ou dar as costas a qualquer um desses pequeninos.

Por falar em negligência e ofício, que seria mais danoso para a edificação de um indivíduo que bombardeá-lo com superficialidades? Nada o desequilibraria e desqualificaria tanto quanto a mediocridade. Nulificado por valores levianos o que vai restar é a dor eterna de não-ser… Não ser capaz, não ser digno, não ser ou ser outros que não ele mesmo é a mesma verdade em extremos opostos; no final das contas uma vida sem sentido, sem sonhos ou expectativas vai mascarando o desespero latente e afundando a criatura na Ilusão de ser o que não é. No dia-a-dia raso das vidas obscuras os traços que deveriam salientar seu feitio tornaram-se indefinidos e quando sua singularidade não se distinguiu da multidão o buraco negro das existências desperdiçadas foi a única toca possível nesse mundo mundanizado e, mais mundo do que nunca. Grave é esse negócio, amigo. O aniquilamento de vidas ocorre todos os dias, diante dos nossos narizes que só farejam interesses, vantagens pessoais, criação de conventículos e confortos de última geração enquanto nos tornamos insensíveis e incapazes de experimentar uma autêntica e íntima compaixão pelas almas. Vaidades e demência em pé de igualdade em tempos de alta competitividade.

Sejam quais forem: filhos naturais, espirituais, desconhecidos, ricos, milionários, mendigos, meninos de rua, numa palavra: o Outro, ou seja, o próximo – aquele que está diante de mim e ao qual eu tenho a obrigação espiritual de confrontar, enviar a palavra, aceitando-o incondicionalmente e com o mesmo temor que Jacó demonstrou no Encontro com Esaú. Ao invés de se presumir de Deus, Jacó, olhou, com eloquência, nos olhos de seu irmão e viu nele o próprio Deus. Ah! Mas aqui tem um, porém fundamental, para que eu possa me relacionar de forma legítima com o outro, sem fazer acepção de pessoas, sem artifícios e jogos vãos há uma exigência: que eu próprio seja trabalhado, tratado e que esteja na plena posse da minha verdadeira identidade, não mais um enganador, mas que eu assuma a minha nova identidade, e seja, genuinamente, o indivíduo que nasceu do combate com o Eu Sou: uma criatura totalmente transformada, nova! Apenas alguém pode inviabilizar tamanho feito. Quem? Eu mesmo – visto que, não há inimigo mais forte e potente que minha própria vontade. Quando a vontade sempre logra dobrar o homem, a coesão do eu se dispersa em compartimentos, divide-se em multidões, ou seria legiões? A identidade fragmentada só enxergará no outro suas carências, medos, suspeitas e em última instância aquilo que lhe interessa, inveja, deseja e quer se apropriar.

Seu relacionamento com o próximo se dá em bases fisiológicas melhor dito, no reino do fisiologismo. O que eu tenho a ganhar ou a perder com esse tipo? Pensa ele com seu fígado em agonias. Precisamente aqui se revela o defeito e a enfermidade da alma confundida. Em outro estágio é minha responsabilidade existencial confirmar a vida e se eu a nego, minto, porque a vida pulsa ansiando ser confirmada e mesmo onde há morte é minha obrigação levar a palavra de vida, quando me omito, falho, minto e sou tíbio deixando que a treva prevaleça. É minha responsabilidade e obrigação edificar as vidas que se apresentarem diante de mim seja ela de que classe for; é minha responsabilidade afirmar e minha obrigação confirmar a Vida que, diga-se de passagem, só existe na relação com o Outro. Que sentença, que responsabilidade, que ofício terrível. Mas se isso para ti é uma letra que de tão velha caducou e morreu ou se isso não é novidade para ti, e conhecedor da verdade tu dás as costas a essa sublime missão, – de evocar a palavra princípio qualquer que seja a criatura que a Providência te enviou -, então não es um homem, nem pai, nem irmão, nem nada, apenas mais um que falhou porque não tinha as palavras de vida. Não sabias que o encontro com o outro, essa consciência, esse diálogo (EU e o TU eterno) é o que torna o indivíduo superior a espécie? E o que te digo diante de tudo isso? Brilha luz e ilumina o outro com tua generosidade! Contudo se apenas te interessa brilhar a tua luz e esqueces, deliberadamente, a generosidade, então teu relacionamento com o outro se restringe a interesses pessoais e tua luz é de todo obscuridade.

Oh, Terra, não escandalizes!

Renê Pereira Melo Vasconcellos é psicóloga, doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidad Pontificia de Salamanca, na Espanha.

  1. Não possuíam nenhuma originalidade, as plantas quando existiam, eram colocadas em maciços elevados e os pátios se ornamentavam com mesas de mármore e estátuas; muitos preferiam pintar as paredes do seu jardim com plantas e flores, para evitar estorvos.
  2. Buber, Martin. EU e TU. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.

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